No nosso quintal, havia uma nespereira e um muro.
Para chegarmos às nêsperas, tínhamos de o escalar e saltar para cima da garagem. Isso punha a Avó nervosa e o Mocho furioso. Era por isso que nos escapulíamos, e nessa altura ainda te conseguia pegar ao colo e empurrar-te o rabo para subires à minha frente, porque as tuas pernas eram demasiado curtas e fraquejava-te o ânimo. Quando estávamos em cima da garagem, esquecias o medo da subida e sentias-te crescido. Os ramos mais altos da árvore mantinham-nos parcialmente escondidos. Os meus sentimentos eram diferentes. Para mim, era um refúgio que gostava de partilhar contigo. Apanhava a custo as nêsperas mais maduras e descascava-as para ti.
Dizia-te que tínhamos de fazer pouco barulho e andar em pezinhos de lã. Gostavas da expressão. Zangavas-te porque eu insistia em dar-te os frutos á boca… sujarias a roupa toda, as mãos e a cara se tas desse para a mão, e aí sim, eu estaria ainda em piores lençóis com o Mocho.
A Avó por vezes ia à janela da marquise, estender roupa, e muitas vezes fingia que não nos via, nas nossas tentativas frustradas de nos escondermos atrás dos ramos. Os teus risinhos claros sempre nos traíram, mas é deles que sinto mais falta.
Ainda hoje, cega no amor que sinto por ti, custa-me crer que possa existir um riso como o que tu tinhas, com 3 e 4 anos de idade; ou então, ainda não tive oportunidade de o redescobrir. Aborrecias-te, porque eu passava horas a tirar-te fotografias, reuni dezenas, centenas delas, nos mais variados sítios, nas mais variadas poses, para no fim me restar apenas uma, que consegui trazer. As outras, desapareceram-me com elas… Foi das piores coisas que podiam ter feito, essas pessoas que abriram guerra comigo. Mas mais importantes que as fotografias, ficaram as recordações, para sempre gravadas na minha memória e no meu coração…
Podem tirar-me as tuas imagens, mas jamais conseguirão tirar-te de mim. És meu irmão, meu sangue, há algo que nos une para sempre, inquebrável perante a intempérie.
A doce lembrança daquelas tardes douradas, com sabor a fruta, dos baloiços no parque em que pedias para te empurrar mais e mais alto, com mais força, os passeios de bicicleta juntos, as fugidas para a mata, as histórias e as canções, as mil vezes que nos chateámos e voltámos a abraçar, as palmadas que te dava e que tu me devolvias quando eu estava distraída, as brincadeiras na varanda… Em tudo tenho a tua imagem, com o teu sedoso cabelo, que já foi muito mais clarinho e fraco do que é agora, vestido com as jardineiras beges e a t-shirt amarela do coelhinho. Nessa altura, parecia muita a nossa diferença de idade, tu com 4 anos e eu com 13. Hoje já não são 4 anos, mas sim 14 os que contaste no último aniversário. E a diferença já não parece tanta. Estás um adolescente lindo, parecido comigo em quase tudo, menos nos olhos, que são mais rasgados que os meus e eternamente mais bonitos.
Aos meus olhos, ainda me pareces pequenino, a pedir-me cavalitas e uma história para adormecer... em pezinhos de lã.
Deixaste-as de lado, por ora. Começaste ainda há pouco a escrever a história da tua vida.

Fotografia - R. O'Neill