Hoje, Recordei..

Naquele tempo, era assim...

Tive mais uma noite de insónia... Há semanas que já não durmo de noite, não consigo! Durmo de manhã quando o barulho começa e a luz desperta. Ver a actividade lá fora dá-me sono e uma melancolia incrível. Com todo este sol de um verão antecipado parece que vejo a cidade envolta em névoa feita de fumo pútrido de almas imundas. Nada me tem tocado realmente, nada me tem surpreendido de maneira nenhuma.
Vejo os dias passarem como se se tratasse do mesmo dia de pesadelo retratado vezes sem conta, mas sempre com um novo pormenor que o torna ainda mais insuportável, sem sombra de amor para me abrigar do sol que a dilacera.
Cheguei a um ponto em que não desejo mais do que aquilo que já tive, penso que não poderei viver melhor...
Quando a vida foge de nós sem motivo, só nos podemos resignar e esperar pelo fim.
As feridas dos outros não me conseguem reconfortar, continuo com aquele patético sentimento compassivo, de pena.
Mas no entanto, em raros momentos de lucidez, não quero que as suas feridas sarem. Quero senti-los no fundo da mesma maneira que eu.

Já foi assim, para mim, antes da libertação, do despertar, da saída daquele ciclo vicioso e sujo, em redor de seres nojentos que a cada dia me conspurcavam a alma, me envenenavam a personalidade, deixando-me não mais do que um farrapo escondido por uma tenda negra como o breu. Não custa lembrar-me disso, custa-me sim pensar no odioso ser humano que seria se não me tivesse afastado.
Que tipo de sol se poderia erguer para o Mi, se não tivesse reivindicado a sua luz?
Exigi ser feliz, o pior pecado que, para eles, poderia ter cometido. Tanto que se habituaram à certeza da minha presença miserável, que me tornei (como sempre fui) um brinquedo que se arremessa de lado para lado, um escudo para as duas partes, uma desculpa para se atacarem mutuamente, porque a parte viva era dispensável.
Recusei fazer mais parte disso, quando me senti suficientemente forte.
Aconteceu num dia de Abril, mais de três anos já passados. Uma pergunta. Um pedido que durou 3 segundos e passou a ser lembrança de um direito que me era devido, no meio de gritos e faces disformes à minha volta.
Nesse dia, soube que tinha conquistado algo. Nada que tivesse a ver com esse meu direito, porque me servi dele apenas para conseguir dobrar a defesa dos meus atacantes.
Era uma guerra inútil, que me levava ao desespero, mas viciosa para eles, que se haviam acomodado a ela como um mal necessário, e da qual sentiam o maior prazer em participar. Disso tudo, muito de mim ficou pelo caminho, coisas que estão no sítio hoje, outras que ainda se estão a compor. Mas também ficaram coisas que nunca vou conseguir recuperar, feridas que ainda abrem e dificilmente cicatrizarão.
Foi uma guerra sem vencedores nem vencidos, sem sentido, insana, que durou anos mas que acabou nos 3 segundos mais ousados da minha vida. Em que me atrevi a questionar, em que sabia ter força suficiente para a chuva ácida que se seguiria. Paguei um preço elevado pelos erros alheios, mas também os que mais amo pagaram pelos meus.

Quando amanheceu, o nosso céu ainda consentia algumas nuvens no horizonte. Mas a névoa havia desaparecido para sempre, e com ela os rostos dos combatentes que nunca mais vi, pois o seu vislumbre não é necessário para minha vida. Deixo que condenem o que lhes aprouver, não importa, não tem significado, aquilo que possam dizer, a maneira como possam agir, tudo acabou por me ser indiferente. Fiz todos os meus lutos longe de vós, nunca quiseram conhecer-me, na vossa loucura pensaram que sabiam do que tratava a minha essência.
Mas oh! Longe disso... Deixei de permitir que me inflijam mais dor, a mim e aos que amo. Às vezes, tomo consciência daquilo que se costuma dizer - que "o sangue é mais espesso do que a água". Porque apesar de todos os anos de solidão acompanhada, da guerra-fria que travámos entre nós, sinto saudades de ter a família da qual derivo, por mais disfuncional e desequilibrada que possa ser... Do que é que tenho saudades? Daquilo que nunca existiu... De uma harmonia fantasiosa que o meu coração criou para preencher esse vazio. Nos meus sonhos bons, vocês ainda são de luz!... Ainda são pai, mãe, avós, tios, rodeando os meus irmãos em crescimento, protegendo-me, defendendo-me, amando-me, tomando-me como uma de vós e dando isso como certo para toda a vida. Criando um ambiente feliz onde poderia levar o Mi de visita, para que ele soubesse de onde descende. E vós abraçá-lo-iam, porque "o sangue seria mais espesso do que a água", e ele não questionaria o vosso amor, seriam sempre um porto de abrigo para ele no futuro, algo que para sempre o ligasse ao meu próprio passado.
Mas... isso nunca poderá ser assim. Vocês não são assim. A guerra continua latente... E o Mi merecerá melhor.

Hoje, recordei.
Hoje, não desejo que sofram nem vos guardo ódio...
E só por hoje, desejo que sejam abençoados e que encontrem a paz que eu tento agarrar todos os dias, mesmo com as questões da vida menos agradáveis, é possível encontrar um pouco de paz... A felicidade está nas pequenas coisas que deixamos passarem-nos ao lado. Não sintam mágoa pela minha felicidade.
Sou feliz, porque o meu amor gosta de olhar o final do dia pela janela... porque é a outra metade da minha alma, porque somos igualmente desiguais.
Sou feliz porque o meu ventre de mexe, se agita, porque o Mi me dá pontapés e tem soluços.
Sou feliz porque amar nem sempre quer dizer ter afecto constante e paixão desmesurada... Amar também é dar um grito, fazer sacrifícios, bater com o pé, esquecermo-nos de nós.
Sim, sou feliz na maior parte das vezes... mesmo na dificuldade, conseguimos encontrar algo bom, se nos dispusermos a isso.

Naquele tempo, era assim...
As insónias deviam-se a coisas más...
Hoje, as insónias devem-se ao aguardar o nascimento do Mi, ou porque ele não fica sossegado.
E daqui a uns tempos, as insónias passarão a ser despertares constantes para lhe satisfazer cada necessidade, e a cada vez será satisfeita com o amor incondicional que lhe tenho, sem precisar de o ver ainda, porque todos temos capacidade para amar o invisível.
E esse amor, sempre constante, é partilhado vezes sem conta com a outra metade da minha alma, meu companheiro de caminhada na vida, de sempre e para sempre.

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